Augusto Ferreira: Entre Papeis, Versos e Saudade
Augusto Ferreira: Entre Papeis, Versos e Saudade
Aos 82 anos, Augusto Ferreira é um homem de histórias e versos. Nascido em Castelo Branco, cresceu numa casa modesta, onde aprendeu que cada palavra tem peso e cada silêncio, um significado. Hoje, mora sozinho em um lar de idosos em Coimbra, onde divide os dias entre recordações da juventude, memórias da profissão e poesias que ainda escreve com paixão.
Uma Infância de Sonhos e Perguntas
Desde pequeno, Augusto sempre foi um menino curioso. Gostava de observar o pai escrevendo cartas e a mãe contando histórias ao redor da lareira. "Se a vida fosse um papel, eu queria enchê-la de palavras bonitas", dizia já em sua infância. Passava horas na pequena biblioteca da vila, onde se perdia nos livros e imaginava-se vivendo outras épocas.
Mas a verdadeira revolução no seu mundo aconteceu aos 14 anos, quando seu padrinho, o professor Álvaro, lhe presenteou com uma enciclopédia. Foi um momento mágico – ao abrir aquele livro pesado e repleto de imagens e textos, Augusto sentiu que segurava o universo nas mãos.
Álvaro era mais que um padrinho; era um mestre da curiosidade, um homem de palavras sábias e gestos pacientes. Durante as férias de verão, Augusto ia para sua casa, onde o tempo parecia ganhar outra dimensão. Lá, não havia simples conversas – havia descobertas! Álvaro o levava para um mundo onde cada livro escondia um segredo, cada página revelava uma nova perspetiva. Ele ensinava sobre astronomia apontando para as estrelas, falava de história como quem a tinha vivido e mostrava mapas antigos que pareciam conter tesouros invisíveis.
As noites eram preenchidas com leituras e discussões animadas. "Nunca aceite um fato sem questioná-lo", dizia Álvaro, enquanto mostrava livros sobre ciência e filosofia. Augusto, fascinado, absorvia cada palavra como se fossem peças de um grande quebra-cabeça da vida. E a enciclopédia, aquele presente inesquecível, tornou-se sua companheira inseparável – lia sobre civilizações antigas, exploradores destemidos e invenções que mudaram o mundo.
Graças ao padrinho, Augusto aprendeu que o conhecimento era uma aventura sem fim. E foi ali, entre livros empilhados e noites estreladas, que nasceu sua sede de aprender – uma sede que nunca mais o abandonaria.
A Juventude e o Amor que Não se Concretizou
Nos tempos da faculdade em Lisboa, Augusto estudou Direito e dedicou-se ao sonho de se tornar notário. Foi nessa época que conheceu Clara, uma jovem de olhos brilhantes e riso fácil. Conversavam sobre literatura, política e o futuro – um futuro que, infelizmente, nunca aconteceu juntos. A vida levou Clara para longe, e Augusto, por mais que desejasse, nunca conseguiu juntar as peças desse amor. "Foi um daqueles amores que ficam guardados na gaveta da alma", costuma dizer.
Uma Vida Entre Assinaturas e Destinos
Como notário, Augusto lidou com histórias de todos os tipos – contratos, testamentos, escrituras e, claro, algumas confusões dignas de um romance. Para ele, cada documento não era apenas um conjunto de cláusulas e assinaturas, mas um pedaço do destino de alguém. "Assinei documentos que mudaram vidas, e vi lágrimas e risos em igual medida", relembra com nostalgia.
Houve momentos em que as assinaturas carregavam peso emocional – pais que deixavam seus bens para os filhos, casais que oficializavam a união e, claro, aqueles casos inusitados que tornavam a rotina mais divertida. Uma vez, um cliente quis deixar toda a sua fortuna para seu gato. "Bem, se o gato aprendesse a pagar impostos, eu não via problema!", brinca Augusto, lembrando da confusão gerada por aquele testamento peculiar.
Outro episódio que ele jamais esquece foi quando um casal apareceu no cartório para assinar a venda de um imóvel… mas a esposa, desconfiada da situação, decidiu testar a fidelidade do marido antes de assinar qualquer coisa. "O senhor pode confirmar se há algum outro imóvel registrado em nome dele? E talvez… outro casamento?", perguntou ela, olhando o marido com sobrancelhas erguidas. Augusto, entre a ética profissional e o riso contido, apenas conferiu os documentos e garantiu que nada suspeito constava nos registros.
A profissão exigia precisão, mas Augusto nunca deixou de ver a humanidade por trás dos papéis. Ele sabia que um testamento não era apenas uma formalidade, mas o último desejo de alguém; que um contrato de compra e venda não era apenas um negócio, mas o início de uma nova fase na vida de um cliente. "Cada assinatura carrega um capítulo da vida de alguém", diz, orgulhoso da trajetória que construiu.
O Amor Pela Poesia – Seu Refúgio e Sua Voz
Se há algo que nunca mudou na vida de Augusto, foi a sua paixão pela poesia. Desde jovem, encontrou nas palavras uma forma de expressar emoções e registrar momentos. Mas foi Clara, seu grande amor da juventude, quem despertou nele a sensibilidade para transformar sentimentos em versos.
Clara era uma mulher de alma poética, que falava do mundo com um brilho nos olhos e uma ternura que parecia música. Foi com ela que Augusto aprendeu que a poesia não está apenas nos livros, mas nos gestos, nos silêncios e até nas despedidas. "Ela me ensinou que cada palavra pode ser um abraço, e cada verso, um pedaço do coração", diz ele, com um olhar nostálgico.
Hoje, no lar onde vive, mantém um caderno surrado, onde escreve sobre saudade, esperança e memórias que ainda iluminam seus dias. Mas não são apenas seus próprios versos que o acompanham – Augusto tem uma coleção de livros de poesia cuidadosamente organizada. Os autores que mais admira estão sempre ao alcance da mão: Fernando Pessoa, com sua melancolia profunda; Carlos Drummond de Andrade, que traduz a saudade como ninguém; Cecília Meireles, com sua delicadeza e musicalidade; e Vinícius de Moraes, que transformou o amor em arte.
Entre seus poemas favoritos, há versos que parecem ter sido escritos para ele. "Saudade é amar um passado que ainda não passou", de Aguinaldo Silva, é um dos que mais recita. Também se emociona com "Metade”, de Oswaldo Montenegro, que fala sobre a dualidade da vida e do amor.
"Poesia é como a vida – tem seus altos e baixos, seus ritmos e pausas. Não há verso perdido, assim como não há momento que não valha ser vivido", reflete ele. Seus companheiros de lar já se acostumaram a vê-lo declamar em voz alta, muitas vezes com emoção nos olhos. Para Augusto, a poesia é mais do que palavras – é um refúgio, um abraço invisível e uma forma de manter Clara sempre por perto.
Uma Vida Cheia de Histórias e Versos
Augusto Ferreira prova que a vida é feita de capítulos – alguns escritos com tinta permanente, outros rabiscados em lápis. Com o coração ainda cheio de palavras, ele segue transformando lembranças em poesia e aproveitando cada dia como uma página nova.
"O segredo para um bom poema? Sentir. O segredo para uma boa vida? O mesmo."
Recolha e adaptação: Albino Monteiro