Ernesto Ventura: O Pintor das Coisas Simples da Vida

 

Ernesto Ventura: O Pintor das Coisas Simples da Vida

Se existe alguém que fez da aposentadoria uma nova arte, esse alguém é Ernesto Ventura, um senhor de 77 anos que mora em Tavira, no Algarve. Com seu chapéu de palha e um sorriso que dá inveja ao sol, ele é conhecido por todos como "o pintor das coisas felizes"

Mas nem sempre foi assim..

Um passado entre ferramentas e pincéis

Durante mais de 40 anos, Ernesto foi mecânico ferroviário, cuidando dos comboios como quem cuida de filhos de aço. Sempre dizia, com orgulho e um toque de poesia:

“Cada locomotiva tem alma, só precisa de um ouvido atento e mãos pacientes.”

Aos 60 anos, a vida pregou-lhe uma partida difícil: perdeu Aurora, sua companheira de toda uma vida, a mulher que sabia fazer bolos de laranja enquanto lia romances policiais — e que foi a sua grande força silenciosa.

Com três filhos já crescidos — Inês, arquiteta em Amsterdão; Tomás, enfermeiro na Suíça; e Luísa, professora em Lisboa — Ernesto viu-se rodeado de silêncio e saudade. Os filhos ligavam sempre que podiam, mandavam fotos, partilhavam histórias, mas ele sentia falta das pequenas coisas: o barulho da casa cheia, o cheiro do café pela manhã, as discussões sobre quem ia lavar a loiça.

“Foram embora pelo mundo — e fizeram bem! Quero que vivam com os pés no chão e os sonhos no ar, como comboios em linha reta. Mas aqui ficou o pai... e os pincéis.”

Foi então que decidiu não se entregar à solidão. Tirou do armário os pincéis que guardava desde a juventude, presente de um tio que dizia que "quem pinta, nunca envelhece — apenas muda as cores da alma". E assim, com mãos já habituadas ao ferro e ao óleo das locomotivas, Ernesto começou a transformar memórias em aquarelas.

🖌️ Um Artista Inesperado

Começou por pintar o quintal — “para lhe dar vida nova”, dizia ele. Depois veio o portão, que ganhou flores vermelhas e andorinhas em voo. E quando deu por si, Ernesto estava a mergulhar em telas com a mesma paixão com que antes mergulhava no ferro das locomotivas. Começou a pintar as paisagens da sua infância: o bulício colorido do mercado de Olhão, os barcos de pesca na Ria Formosa, o silêncio sereno das manhãs de Tavira, e, claro, o comboio das 7h15, sempre pontual, sempre parte da sua história.

“Pintar é como escrever memórias com cores,” diz ele. “E as minhas memórias são todas em tons quentes.”

Mas o que realmente o encanta são os movimentos do mar, que ele tenta eternizar com pinceladas leves e dançantes — “como se o Atlântico respirasse com alma própria”. Nos seus quadros, as ondas não se repetem, elas contam histórias, como se carregassem segredos de outras terras.

Durante o verão, quando Tavira se transforma num palco de línguas e culturas, Ernesto costuma pintar debaixo de um toldo na praça, com a sua cadeira dobrável e um chapéu de palha. Ele diz que nessa altura, “a cidade fala em voz global”, uma mistura doce de inglês, francês, alemão, italiano, e sons de países que ele nem sabe apontar no mapa — mas que entram pela sua tela como notas musicais numa sinfonia de cor.

“O verão aqui é como um quadro inacabado, cheio de sons que vêm e vão, e gente que chega com o mundo nos olhos.”

Aos poucos, os vizinhos e turistas começaram a encomendar retratos dos seus cães, casas antigas, e até cenas da festa da aldeia, com bombos e marchas populares. Hoje, Ernesto expõe suas obras na biblioteca municipal, onde é tratado como celebridade local — embora continue a jurar que só aceita pagamento em bolinhos de amêndoa ou figos secos.

O Clube dos “Velhos Novos”

Às quartas-feiras, Ernesto veste a sua camisa preferida, apanha o cavalete e segue para o salão da junta de freguesia, onde se encontra o seu refúgio semanal: o Clube dos “Velhos Novos”. Ali, o tempo parece abrandar, mas os risos aceleram. É um espaço onde não há pressa, nem protocolos — apenas o prazer de partilhar talentos, memórias e afetos.

O grupo é uma colcha de retalhos humanos, costurada com histórias deliciosas. Há a Dona Lurdes, de 83 anos, viúva atrevida e autora de poesias eróticas que recita com voz firme e sobrancelha arqueada, arrancando gargalhadas e suspiros. Há o Sr. Agostinho, ex-ferreiro, agora poeta do cavaquinho, que insiste em tocar “uma modinha” sempre que alguém traz bolo. E há ainda o excêntrico casal sueco, Karin e Lars, que aprendeu a dançar o vira português com uma graça quase cómica — “trocam os pés, mas nunca o sorriso”, diz Ernesto.

Ernesto é o curador não-oficial das exposições do grupo. Todos os meses, organiza a “parede da arte”, onde pendura quadros seus e dos colegas — sempre acompanhados de frases inspiradoras escritas à mão. A sua preferida?

“Se a vida te der limões, pinta-os em aquarela.”

Mas o que mais o comove no grupo não são os talentos, e sim os laços que se formam. Às vezes, entre um chá e uma anedota mal contada, ele recorda com saudade os velhos amigos de infância, muitos já idos, que partilharam com ele as corridas pelas ruelas de Tavira e as pescarias ao entardecer. Nesses momentos, ele levanta discretamente o copo de chá e murmura:

“Um brinde aos que me ensinaram a ser menino, e outro aos que me ensinam a ser velho com alegria.”

“O homem foi feito para estar entre outros. O convívio é como o sol — é a fotossíntese da alma,” costuma dizer com o olhar sereno. “Sozinhos, murchamos. Juntos, florescemos.”

Para Ernesto, o Clube dos “Velhos Novos” não é apenas um passatempo. É uma celebração da vida em voz alta, uma pequena orquestra de afetos onde ninguém precisa provar nada, apenas estar presente — inteiro, sincero, e disposto a rir.

Um pôr do sol com cheiro a memórias

O mais bonito de Ernesto não é o talento com as tintas, mas o jeito leve com que encara a vida. Para ele, envelhecer é continuar a ser curioso, continuar a rir, e nunca deixar de se surpreender com o pôr do sol (que ele insiste em pintar quase todos os dias).

“Ser velho é uma bênção. Só os teimosos, como eu, chegam até aqui com saúde e bom humor!”

Ernesto Ventura descobriu que a velhice não é o fim de nada, é apenas o início de outra aventura — com menos pressa e mais intenção. Ele é um lembrete vivo de que enquanto houver memórias, há tinta para pintar. E enquanto houver gargalhadas partilhadas, há juventude no peito.

Na sua pequena casa em Tavira, entre telas por secar, pincéis gastos e jarras de flores do campo, vive um homem que não deixou o tempo engavetar os sonhos. E que todos os dias nos ensina, sem dar lição nenhuma, que a felicidade está nas coisas simples — como pintar o mar, partilhar chá com amigos e escutar uma língua desconhecida ecoar pelas ruas quentes do verão.

“Ser velho não é ficar para trás. Ser velho é ter mais histórias para contar e menos medo de contá-las.” — Ernesto Ventura

Se um dia estiver em Tavira e vir um senhor a pintar à beira-mar, não tenha dúvidas: é o Ernesto. Sorria, acene, e ele talvez pinte você também — com um sorriso no rosto e alma colorida.


Recolha e Adaptação: Albino Monteiro

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