O Livro Por Escrever de Alípio Pereira

O Livro Por Escrever de Alípio Pereira

Aos 76 anos, Alípio Pereira é um homem de palavras — escritas, faladas e, muitas vezes, caladas. Reformado há mais de uma década do ensino de Português, carrega nos olhos o brilho de quem dedicou a vida ao saber, e nas mãos, a inquietação de um sonho adiado: escrever um livro.

Natural de uma aldeia tranquila do interior de Portugal, Alípio sempre se destacou entre os seus. Ainda jovem, fascinava-se com os clássicos que lia em voz alta para os irmãos, e mais tarde, para os seus alunos. Foi um professor apaixonado, desses que não apenas ensinam a gramática, mas despertam o gosto pela leitura e pelas palavras bem ditas. Mas, apesar de ter incentivado tantos a escreverem, nunca teve coragem de fazê-lo por si mesmo.

Ao longo dos anos, foi acumulando pequenos cadernos de capa mole, onde anotava ideias, frases soltas, diálogos imaginados e memórias vividas. São tantos que ele próprio diz, com humor: “A minha futura obra já tem biblioteca própria.” Os amigos mais próximos conhecem bem essa história, pois volta e meia Alípio comenta sobre o tal livro que ainda não nasceu, como quem fala de um filho sonhado.

Os filhos, sempre atentos, decidiram apoiar o sonho adormecido. A filha ofereceu-lhe um computador novo no último Natal, embrulhado com uma fita vermelha e um bilhete: “Para o teu livro, pai. Agora tens todas as ferramentas.” O neto mais velho, rapaz de espírito inquieto e mãos digitais, criou um blog para ir publicando os rascunhos do avô. Chamou-lhe “Fragmentos de Alípio”, e lá, pouco a pouco, começam a surgir os primeiros parágrafos — ainda tímidos, mas vivos.

Mesmo com esse apoio todo, Alípio confessa: “Não sei o que falta. Tenho tempo, tenho meios, até tenho leitores antes do livro existir... mas falta-me a centelha.” Ele acredita que escrever para a posteridade é diferente de escrever para a sala de aula. “Ali, eu sabia o que dizer. Aqui, escrevo para o desconhecido. E isso exige mais do que saber... exige alma.”

Os dias de Alípio são preenchidos com leituras, caminhadas curtas pelo jardim e revisitas constantes aos seus cadernos. Cada anotação carrega o peso e a leveza de uma vida observada com atenção. Às vezes, numa tarde mais inspirada, senta-se em frente ao computador e começa a digitar, hesitante. Noutras, limita-se a reler o que já escreveu, e sorri, como quem reencontra uma velha lembrança.

Hoje, o livro ainda não tem capa, nem título. Mas já tem conteúdo, e sobretudo, tem vida. A história de Alípio ensina que os sonhos não têm data de validade, e que o verdadeiro escritor é aquele que, mesmo em silêncio, nunca deixou de contar histórias — nem que fosse apenas para si mesmo.

“Escrever é um acto de fé”, diz ele com um brilho nos olhos. “E talvez um dia desses, essa fé se transforme em livro.”

Porque, afinal, há livros que nascem quando o autor finalmente se encontra com a sua própria coragem. E Alípio está quase lá.

 Recolha e adaptação: Albino Monteiro