Mais que Remédios: A Arte de Curar com o Coração
Mais que Remédios: A Arte de Curar com o Coração
Nos anos de juventude, quando começou na arte da farmácia, quase tudo era feito à mão. Lembra-se bem dos tempos em que manipulava xaropes para a tosse, cremes para as dores e até loções para acalmar a alma — sempre com uma pitada de sabedoria popular e um toque de ciência antiga. Quando fala do Bonfim, os olhos de Paulo brilham com ternura. Descreve a freguesia como quem fala de um velho amigo: as ruas íngremes com casas de azulejo, os pregões matinais do mercado, o sino da igreja que marca as horas como um coração a pulsar no bairro. Conhece cada esquina, cada rosto, cada história sussurrada entre uma consulta e outra. Lembra-se do aroma do pão quente da padaria da Dona Arminda, do som das crianças a jogar à macaca na calçada, das conversas demoradas nas soleiras das portas ao fim da tarde. Ama aquele lugar profundamente — não só pela beleza melancólica das fachadas antigas, mas pelo calor humano que ali sempre encontrou. “Isto não é só o sítio onde trabalho. É o sítio onde pertenço”, costuma dizer, com a voz embargada pela emoção. “Havia mais tempo para ouvir as pessoas, e às vezes era isso que curava mais depressa”, recorda com um sorriso.
A farmácia Mendes não era apenas um lugar para comprar medicamentos — era um ponto de encontro, um espaço de confidência. Gente de todas as idades passava por lá: mães com bebés ao colo, senhores idosos com histórias longas, estudantes nervosos antes dos exames. Paulo escutava todos, com paciência, sem pressa. Conta-nos que havia um canto sossegado, com duas cadeiras de madeira e uma mesinha redonda com jornais do dia, onde os clientes esperavam calmamente enquanto ele preparava os remédios com as próprias mãos. O cheiro das essências naturais, do álcool de lavanda, do mentol e da cânfora, misturava-se no ar como uma poção invisível de conforto. As prateleiras, de madeira escura, estavam alinhadas com frascos de vidro rotulados à mão, e atrás do balcão, um armário antigo guardava os segredos da manipulação: almofarizes de cerâmica, colheres de medidas precisas e rótulos manuscritos com caligrafia cuidada. Preparava os medicamentos como quem cozinha um prato especial, explicando cada passo com gosto. Hoje, lamenta a velocidade do atendimento moderno, a ausência de tempo para conversa e a frieza das embalagens padronizadas: “Antes, tratávamos da pessoa toda. Agora, só da receita.”
Com o tempo, as leis mudaram, os remédios passaram a vir prontos das grandes farmacêuticas e a arte da manipulação — aquela que exigia tempo, precisão e sensibilidade — foi, aos poucos, sendo empurrada para o canto da memória. “Hoje já se prepara pouca coisa. Vêm todos com receitas digitais e pressa na alma”, diz Paulo, enquanto passa a mão pelas prateleiras que já guardaram fórmulas mágicas em frascos âmbar. O balcão, antes espaço de conversa e escuta, tornou-se um lugar de transação rápida, onde o olhar raramente se cruza e as palavras são reduzidas ao mínimo necessário. Ainda assim, Paulo nunca deixou de ser fiel à sua forma de cuidar: o conselho certo para quem está em baixo, um sorriso firme para quem chega aflito, e aquela infusão de camomila com casca de laranja e erva-cidreira — que, segundo ele, “não cura tudo, mas acalma o que mais dói”. Era esse o segredo: não se tratava apenas de aliviar sintomas, mas de cuidar da pessoa como um todo — corpo, mente e coração. Para Paulo, a farmácia sempre foi mais do que um lugar de curas: era um espaço de humanidade.
A farmácia foi também o lar de sua família. Clara, sua esposa e companheira de jornada durante mais de cinco décadas, era o coração silencioso daquele espaço. Oficialmente, cuidava da parte administrativa — os registos, as contas, os fornecedores — mas, quando o movimento apertava ou quando percebia alguém a precisar de atenção especial, não hesitava em ir até ao balcão. Com o avental bem passado e o cabelo preso num coque simples, Clara acolhia os clientes com uma gentileza firme, quase maternal. Tinha um dom especial para reconhecer quando alguém precisava mais de conversa do que de comprimidos, e nessas horas oferecia um chá ou puxava uma cadeira. “Havia dias em que ela fazia mais pelo doente do que eu com os meus preparados”, reconhece Paulo, sorrindo com ternura. Os filhos, em diferentes fases da vida, também marcaram presença ali: ajudavam a embalar, a limpar frascos, a organizar os rótulos e até a servir os clientes com timidez juvenil. Foi naquela farmácia que aprenderam, quase sem dar por isso, sobre responsabilidade, empatia e o valor de um trabalho feito com dedicação. Hoje, apenas a filha mais nova seguiu o caminho da saúde — é farmacêutica como o pai, mas num hospital moderno, rodeada de máquinas, códigos e normas rígidas, onde já quase não se ouve o tilintar das colheres de medição nem se sente o cheiro das fórmulas caseiras. “Mas ela sabe de onde veio”, diz Paulo, com orgulho no olhar e a certeza de que, mesmo em silêncio, as raízes continuam a alimentar os gestos.
Já reformado, Paulo dedica as suas manhãs a passeios tranquilos pelo bairro, especialmente pelo jardim da praça central, onde os bancos antigos são palco de encontros diários entre velhos amigos. É ali que ele se senta, entre conversas pausadas e risos partilhados, para recordar tempos passados e refletir sobre as mudanças que o presente traz. Muitas vezes, troca ideias sobre a vida, a saúde, as pequenas alegrias e as dificuldades do dia a dia, sempre com a sabedoria que só os anos podem dar. De vez em quando, para além dos cumprimentos calorosos que recebe, ainda prepara um chá calmante para um vizinho cansado ou um creme caseiro para os reumáticos da Dona Emília, aquela senhora que jamais esquece de lhe agradecer com um sorriso. No fundo, Paulo continua a curar — nem que seja com uma palavra amiga, um gesto generoso, ou uma memória bem contada que aquece o coração. Mesmo fora da farmácia, mantém viva a arte de cuidar, transformando o bairro numa extensão da sua pequena, mas grande, missão.
Na antiga farmácia, que hoje pertence a um farmacêutico mais jovem, permanece uma pequena prateleira cuidadosamente preservada, onde repousam frascos de vidro rotulados à mão, testemunhas silenciosas de um tempo em que cada fórmula era preparada com alma e dedicação. Foi um pedido feito pelo novo dono, que reconheceu o valor daquele legado intangível: “Para que a alma da casa nunca se perca.” Ao ver aquela lembrança viva, Paulo emocionou-se profundamente — como se, naquele gesto, o passado se mantivesse presente e a sua história continuasse a pulsar entre aquelas paredes. Com um olhar que mistura nostalgia e serenidade, ele costuma dizer: “No fim, o mais importante não era o que se vendia. Era o que se dava: tempo, escuta e um bocadinho de fé.” Assim fala Paulo Mendes, o homem que aprendeu a curar não só com a ciência, mas também com o coração. Um verdadeiro mestre dos pequenos milagres do quotidiano, que transformou uma simples farmácia num refúgio de esperança e humanidade.
Por Albino Monteiro