As Lições de um Jogo Silencioso
As Lições de um Jogo Silencioso
Todas as manhãs, no banco de pedra junto ao velho coreto da praça, Paulo e Jorge voltam a sentar-se frente a frente, com o tabuleiro de xadrez entre eles e um mundo de memórias por contar. Paulo tem 70 anos, Jorge 72. Conheceram-se há mais de cinco décadas, quando eram dois jovens professores recém-chegados à mesma escola primária. Paulo dava aulas de História, Jorge de Matemática. Criaram uma amizade que sobreviveu a casamentos, mudanças, filhos, perdas e reformas. Agora, com os cabelos brancos e os passos mais lentos, reencontraram no xadrez uma forma de continuar a ensinar — não às crianças, mas um ao outro.
Enquanto movem as peças com calma e precisão, conversam sobre o que foi e o que ficou. Paulo relembra com carinho a escola onde trabalhou por mais de 35 anos, os alunos curiosos, os projetos culturais que organizava com paixão. Jorge, mais reservado, partilha com parcimónia histórias da sua luta para equilibrar a vida entre a rigidez dos números e o caos da vida pessoal: perdeu a mulher cedo e criou dois filhos sozinho, com ternura e disciplina. Paulo fala dos netos, do orgulho que sente ao vê-los interessarem-se por livros e arte, mas também da distância que o tempo e as rotinas modernas vão criando. Jorge fala menos da família, mas sorri ao mostrar no telemóvel a mensagem que recebeu da filha na véspera: "Pai, estás bem? Ainda jogas com o Paulo?"
Cada jogo é uma conversa disfarçada. Há dias em que falam sobre política, sobre o mundo que mudou demasiado depressa. Noutros, relembram os colegas que já partiram ou confessam pequenos medos — da solidão, da memória a falhar, das ausências que vão ficando maiores. Paulo diz sempre que partilhar pensamentos com Jorge é a melhor terapia que encontrou: “Ele não me interrompe, não me julga. Só ouve e depois move um bispo como quem diz: ‘estou aqui.’”
Aos olhos de quem passa, parecem apenas dois velhotes entretidos. Mas ali, entre peões e rainhas, há uma amizade que sobreviveu ao tempo e às ausências, uma troca de sabedoria e um silêncio carregado de significado. “Todos deviam jogar xadrez”, diz Paulo com um sorriso sereno, “ou, pelo menos, ter um amigo com quem se possa partilhar o coração. No fim das contas, é isso que nos mantém vivos.”
Recolha e adaptação: Albino Monteiro