Os Passos de Joaquim
"Os Passos de Joaquim"
Joaquim Mendes tinha 77 anos e vivia na cidade costeira de Setúbal. Cabelo branco como as ondas da praia da Figueirinha, olhos vivos e mãos marcadas pelo tempo. Tinha sido sapateiro durante mais de cinco décadas, ofício que aprendeu com o tio quando ainda era um rapaz magro e curioso. A oficina, com cheiro a couro e cola, era quase uma extensão do seu corpo.
Aos 70, decidiu reformar-se. Não por cansaço, mas porque os joelhos começaram a queixar-se e os clientes antigos, muitos já desaparecidos, tinham sido substituídos por sapatos descartáveis e centros comerciais. Fechou a oficina com dignidade, arrumou as ferramentas e voltou-se para o silêncio.
Nos primeiros meses, sentiu-se livre. Caminhava todos os dias à beira-mar, jogava sueca no jardim, conversava com vizinhos. Mas, com o tempo, começou a sentir-se... invisível. Era como se o mundo tivesse passado por ele e não se tivesse dado conta de que ainda estava ali, inteiro, disposto.
Certa tarde, enquanto descansava num banco com vista para o mar, viu uma jovem sentada no chão a chorar. Aproximou-se devagar, como quem não quer incomodar.
— Está tudo bem, menina?
Ela, surpresa com a voz gentil, explicou que era bailarina, tinha vindo de Lisboa para uma audição em Setúbal e torcera o tornozelo no caminho. Tinha medo de não conseguir dançar.
— Mostre lá o pé — disse ele, de forma prática. — Sou sapateiro, não médico, mas vi muitos tornozelos a cederem com saltos tortos.
Riram os dois. Ele ajudou-a a levantar-se e levou-a até à farmácia. Esperou enquanto ela era atendida e, ao final, ajudou-a a arranjar um transporte de volta.
Dias depois, recebeu uma mensagem no telemóvel (que o neto lhe ensinara a usar): "Obrigada por me ter visto. Todos passaram por mim, só o senhor parou. Nunca me vou esquecer."
Aquela frase mexeu com ele. "Só o senhor parou." Joaquim pensou no quanto queria continuar a ser útil. Não pelo trabalho, mas pela presença. Pela escuta.
No mês seguinte, inscreveu-se como voluntário numa escola básica do bairro. Começou a ir uma vez por semana contar histórias aos alunos do 1º ciclo. Falava-lhes de sapatos feitos à mão, de marchas populares, de quando não havia internet e as cartas demoravam semanas a chegar.
As crianças adoravam Joaquim. Chamavam-lhe “o Avô dos Sapatos” e pediam sempre mais uma história antes do toque da campainha. Os professores também agradeciam — não só pela ajuda, mas pelo exemplo de empatia e ternura.
Um dia, uma das meninas escreveu-lhe num cartão:
“Gosto de si porque fala devagar, olha para nós com atenção e sabe coisas que os outros não sabem.”
Joaquim guardou aquele cartão como quem guarda uma medalha. Percebeu que envelhecer não é desaparecer, é transformar-se noutra coisa. De sapateiro, tornou-se contador de histórias. De homem invisível, passou a ser o avô de todos.
Hoje, aos 77 anos, caminha todos os dias pelas ruas de Setúbal com passo firme, olhos curiosos e uma agenda cheia: tem leituras na escola à terça, conversa no lar de idosos à quinta e visitas dos netos ao domingo. Não tem pressa, nem arrependimentos.
Como costuma dizer com um sorriso:
“A vida não acaba quando fechamos a porta da oficina. Às vezes, é aí que ela começa a bater à porta do coração.”
Recolha e adaptação: Gabriel Silva