Dona Amélia e as Palavras Guardadas

 


"Dona Amélia e as Palavras Guardadas"


Amélia Santos tinha 76 anos e morava num rés-do-chão numa rua tranquila de Coimbra, com vista para uma pequena praça onde as árvores floriam na primavera. Vivia sozinha desde que o marido, Joaquim, faleceu há mais de quinze anos. Tinha dois filhos já crescidos, ambos a viver em Lisboa, e três netos que a visitavam quando podiam. Era uma mulher de hábitos simples — café com leite às 7h, pão com marmelada às 7h10 e um passeio pelo bairro às 8h.


Mas havia uma coisa que poucos sabiam: Dona Amélia escrevia. Desde menina, escrevia tudo — pensamentos, sentimentos, histórias que inventava, sonhos que tinha. Guardava tudo em cadernos antigos que empilhava discretamente num armário do quarto, como quem guarda segredos preciosos. Nunca mostrou a ninguém. “Quem é que vai querer ler as palavras de uma velha costureira?”, dizia sempre que alguém descobria que ela gostava de escrever.


Sim, tinha sido costureira toda a vida. Com as mãos ágeis, criava vestidos, arranjava bainhas e colocava botões. O seu ateliê, que funcionava na sala de casa, era ponto de encontro das vizinhas durante décadas. Entre agulhas e linhas, ouvia histórias, oferecia conselhos e, discretamente, tomava notas mentais de tudo o que via. As personagens que criava nos seus textos vinham dessas conversas.


Um dia, por insistência da neta mais velha, Clara, de 21 anos, Dona Amélia mostrou um dos cadernos. Clara ficou emocionada. Leu em voz alta, chorou, riu, e depois disse: “Avó, isto precisa de ser partilhado. As pessoas precisam de te ler.” Dona Amélia hesitou, como se estivesse a entregar um pedaço da alma. Mas acabou por aceitar, com uma condição: “Nada de modernices. Se for para publicar, quero que seja em papel.”


Com a ajuda de Clara, escolheram 12 textos — contos curtos, histórias de amor, perda, esperança, infância e sobretudo da vida simples das pessoas comuns. Enviaram para uma editora pequena, especializada em autores seniores. Para surpresa de ambas, a editora adorou. Um ano depois, aos 77, Dona Amélia publicou o seu primeiro livro: “Palavras Guardadas”.


O lançamento foi na biblioteca municipal. Vieram vizinhos, amigos, antigos clientes e até algumas crianças da escola local. Amélia leu um excerto de um conto e, pela primeira vez na vida, ouviu aplausos dirigidos a si — não por uma bainha bem feita ou um vestido bonito, mas pelas palavras que guardara em silêncio durante tantos anos.


Hoje, Dona Amélia continua a escrever, com ainda mais paixão. Vai à escola do bairro dar oficinas de escrita aos miúdos e costuma dizer:


“A idade não é o fim. Às vezes é só o início de uma parte da vida que ainda não sabíamos que estava à nossa espera.”


E assim, sem pressa e sem vaidade, Dona Amélia tornou-se escritora — não por fama, mas por amor às palavras e à vida. E continua a provar, todos os dias, que nunca é tarde para florescer.


Recolha e adaptação: Gabriel Silva