O Dom do Sr. Antero

 

"O Dom do Sr. Antero"


Antero Figueiredo, 75 anos feitos em abril, era daqueles homens que sabiam fazer um pouco de tudo: consertava torneiras, fazia compotas, sabia apanhar cogumelos no monte e ainda tocava harmónica como ninguém. Vivia em Arcos de Valdevez, na mesma casa onde nascera, com vista para o rio Vez e a serra ao fundo.


Sempre fora homem do campo. Trabalhador, discreto, bom vizinho. Reformou-se aos 68, depois de décadas como mestre de obras. Tinha mãos grandes e marcadas, mas ainda firmes, e uma mente sempre viva. Gostava de ler o jornal na esplanada da vila, conversar com o padeiro sobre futebol e jogar à sueca com os amigos do café Central. Mas por dentro, Antero tinha um desejo que nunca teve coragem de seguir quando era mais novo: fazer teatro.


Sim, teatro. Aquela coisa de palco, falas decoradas, luzes e aplausos. Desde jovem sentia uma vontade estranha de representar. Viu pela primeira vez uma peça em Viana do Castelo, levado por um primo. Nunca esqueceu a sensação — o riso da plateia, os atores a viverem personagens. Mas entre a vida dura no campo, os filhos para criar e as responsabilidades da casa, isso ficou guardado num canto.


Até que, numa manhã de primavera, viu um cartaz colado à parede da Junta de Freguesia:

“Grupo de Teatro Sénior — Inscrições Abertas. Não precisa de experiência, só de vontade!”


Riu-se, pensou "já vou tarde", mas no fundo, a ideia ficou-lhe na cabeça. À noite, falou com a filha mais nova, que disse logo:

— Pai, se não for agora, quando é que vai ser?


Na semana seguinte, lá estava Antero, de boné na mão, à porta do centro cultural. A sala estava cheia de outros seniores como ele, com mais curiosidade do que confiança. A coordenadora era uma jovem animadora cultural chamada Marta, cheia de energia, que os incentivou logo:


— Aqui, ninguém precisa de ser ator profissional. Só precisa de ter coragem para se divertir!


Antero começou devagar, tímido. Nos primeiros ensaios, lia as falas com a voz baixa, quase envergonhado. Mas com o tempo — e muitos risos partilhados com os colegas — começou a soltar-se. Encenavam peças simples, contos populares, pequenas comédias do cotidiano. Descobriu que tinha jeito para fazer personagens cómicos. Quando entrava em cena com sotaque exagerado e expressões inventadas, o público ria-se às gargalhadas.


A primeira atuação foi numa tarde cultural na Casa do Povo. Lotação esgotada. Antero representou o papel de um velho rabugento que não queria ir ao médico, mas acabava convencido pela mulher — interpretada por D. Germana, viúva e com 81 anos, que lhe roubava sempre as falas com improvisos engraçados. O público levantou-se no fim. Havia palmas, gargalhadas, abraços.

Depois disso, o grupo foi convidado para atuar em outras freguesias, feiras populares, escolas e até numa rádio local. Sr. Antero ficou conhecido como “o ator dos setenta”. Ganhou confiança, ânimo e uma nova rotina cheia de ensaios, viagens de carrinha e conversas cheias de entusiasmo.

Certo dia, um rapaz jovem da plateia aproximou-se no final da peça e disse:

— O senhor é mesmo engraçado. Nunca pensou em escrever alguma coisa sua?


Antero pensou e respondeu:

— Eu nunca pensei sequer que um dia ia estar num palco. Agora? Tudo é possível.


E assim começou a escrever pequenos textos de teatro baseados em histórias reais da aldeia, cheios de humor e ternura. Já há planos para juntar essas peças num livrinho que o grupo pretende lançar no próximo ano.


Hoje, Sr. Antero continua firme, feliz e mais animado que nunca. Quando lhe perguntam se não está cansado para tanto teatro, responde com um sorriso e a harmónica no bolso:


“A vida não se cansa de nós. Só pede que a gente viva com gosto.”


Recolha e adaptação: Gabriel Silva