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O Dom do Sr. Antero

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  "O Dom do Sr. Antero" Antero Figueiredo, 75 anos feitos em abril, era daqueles homens que sabiam fazer um pouco de tudo: consertava torneiras, fazia compotas, sabia apanhar cogumelos no monte e ainda tocava harmónica como ninguém. Vivia em Arcos de Valdevez, na mesma casa onde nascera, com vista para o rio Vez e a serra ao fundo. Sempre fora homem do campo. Trabalhador, discreto, bom vizinho. Reformou-se aos 68, depois de décadas como mestre de obras. Tinha mãos grandes e marcadas, mas ainda firmes, e uma mente sempre viva. Gostava de ler o jornal na esplanada da vila, conversar com o padeiro sobre futebol e jogar à sueca com os amigos do café Central. Mas por dentro, Antero tinha um desejo que nunca teve coragem de seguir quando era mais novo: fazer teatro. Sim, teatro. Aquela coisa de palco, falas decoradas, luzes e aplausos. Desde jovem sentia uma vontade estranha de representar. Viu pela primeira vez uma peça em Viana do Castelo, levado por um primo. Nunca esqueceu a se...

A Aventura de Dona Rosalina

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  "A Aventura de Dona Rosalina" Rosalina Martins tinha 74 anos, cabelos bem penteados com rolinhos todas as noites, unhas pintadas de vermelho discreto e uma gargalhada que se ouvia do outro lado da rua. Morava em Setúbal, num prédio antigo com varandas de ferro forjado, onde cultivava manjericão, hortelã e tomates-cereja numas jardineiras improvisadas. Tinha sido funcionária dos correios durante 35 anos e era conhecida por sempre trazer um rebuçado no bolso para as crianças e um comentário espirituoso para os adultos. Reformada há quase duas décadas, nunca deixara de se manter ativa. Fazia hidroginástica duas vezes por semana, era mestre em tricô (já tinha feito mantas para meia família) e liderava o grupo “Alegria na Terceira Idade” no centro comunitário do bairro. Mas Rosalina queria mais. Muito mais. Um dia, ouviu uma reportagem na televisão sobre um grupo de seniores espanhóis que estavam a fazer caminhadas pelo Caminho de Santiago. “Ora bolas”, disse ela com uma colher ...

Dona Lurdes Vai à Dança

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  "Dona Lurdes Vai à Dança" Lurdes Ferreira tinha 71 anos e um brilho nos olhos que nunca envelheceu. Vivia em Matosinhos, num apartamento com vista para o mar, onde todas as manhãs abria as janelas para deixar entrar o cheiro da maresia e os sons das gaivotas. Tinha sido professora primária durante quase quatro décadas, e era daquelas que os antigos alunos ainda cumprimentavam com respeito e carinho na rua. Viúva há cinco anos, Lurdes não era de ficar parada. Fazia parte do grupo de leitura da biblioteca, jogava cartas às quartas-feiras com as vizinhas do prédio e fazia voluntariado no centro de dia local. Mas, no fundo, havia algo que sempre quis fazer e nunca teve coragem: dançar. Desde jovem, sonhava em aprender dança de salão. Mas o tempo, os filhos, o trabalho e as obrigações da vida sempre ficaram em primeiro lugar. Agora, reformada e com os filhos crescidos, não havia desculpas. Um dia, ao passar em frente a uma academia de dança perto do mercado municipal, viu um car...

O Zé da Bicicleta

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  "O Zé da Bicicleta" José Matos, mais conhecido na vila de Azeitão como "Zé da Bicicleta", tinha 77 anos e uma energia que deixava muita gente de 40 com inveja. Reformado há mais de uma década, era impossível encontrá-lo parado por muito tempo. Todas as manhãs, chovesse ou fizesse sol, lá ia ele com a sua inseparável bicicleta azul, a pedalar pelas estradas entre os vinhedos e os campos verdes da região. Zé tinha sido carteiro a vida inteira. Conhecia cada rua, cada casa, cada atalho e cada pessoa pelo nome. Ainda hoje, quando passa de bicicleta, vai acenando para uns e trocando piadas com outros. A sua simpatia era tão natural quanto o cheiro do pão quente na padaria da Dona Graça. Mas Zé tinha um segredo que poucos sabiam: aos 74 anos, depois de décadas a viver para o trabalho e para os outros, decidiu aprender algo novo — música. Sempre gostara de fado, mas nunca tinha tocado um instrumento. Então, num impulso, comprou uma viola (usada, claro) e começou a aprend...

Dona Amélia e as Palavras Guardadas

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  "Dona Amélia e as Palavras Guardadas" Amélia Santos tinha 76 anos e morava num rés-do-chão numa rua tranquila de Coimbra, com vista para uma pequena praça onde as árvores floriam na primavera. Vivia sozinha desde que o marido, Joaquim, faleceu há mais de quinze anos. Tinha dois filhos já crescidos, ambos a viver em Lisboa, e três netos que a visitavam quando podiam. Era uma mulher de hábitos simples — café com leite às 7h, pão com marmelada às 7h10 e um passeio pelo bairro às 8h. Mas havia uma coisa que poucos sabiam: Dona Amélia escrevia. Desde menina, escrevia tudo — pensamentos, sentimentos, histórias que inventava, sonhos que tinha. Guardava tudo em cadernos antigos que empilhava discretamente num armário do quarto, como quem guarda segredos preciosos. Nunca mostrou a ninguém. “Quem é que vai querer ler as palavras de uma velha costureira?”, dizia sempre que alguém descobria que ela gostava de escrever. Sim, tinha sido costureira toda a vida. Com as mãos ágeis, criava v...

Dona Elisa e o Jardim dos Dias

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  “Dona Elisa e o Jardim dos Dias” Elisa Martins tinha acabado de completar 80 anos. Morava sozinha numa casa modesta em Braga, com janelas grandes, cortinas de renda feitas por ela mesma e um jardim que sempre fora o seu orgulho. As rosas, os alecrins e as hortênsias pareciam agradecer-lhe todos os dias pelo cuidado. A vizinhança chamava-lhe "Dona Elisa do Jardim", não por acaso. Viúva há quase vinte anos, mãe de dois filhos e avó de quatro netos, Elisa era daquelas senhoras que falam baixo, andam devagar e pensam muito. Nunca fora de grandes festas nem viagens, mas conhecia o valor das pequenas coisas: uma chávena de chá ao entardecer, um bom livro, uma conversa à porta de casa. Vivera uma vida de sacrifícios e alegrias discretas, daquelas que não aparecem nos jornais, mas sustentam o mundo. Mas com o tempo, notou que o bairro mudava. Os vizinhos mais antigos tinham partido ou ido para lares. Os mais novos, sempre apressados, mal se cumprimentavam. O silêncio na rua aumenta...

O Recomeço de António Silva

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  “O Recomeço de António Silva” António Silva tinha 76 anos e vivia numa pequena vila do Alentejo chamada Redondo. Alto, magro, de pele marcada pelo sol e mãos firmes apesar da idade, António era conhecido por todos como "o senhor do relógio". Não porque consertasse relógios — embora soubesse fazê-lo —, mas porque era raro vê-lo sem consultar as horas. Sempre tinha a agenda certa, as rotinas bem definidas, os passos contados. Durante 45 anos, António foi funcionário dos CTT. Começou a entregar cartas de bicicleta e terminou atrás do balcão, conhecido por todos pela pontualidade, pela calma e pela educação. Reformou-se aos 65 com honra, festa e bolo na estação de correios. Voltou para casa com um sorriso discreto e o pensamento típico de quem cumpriu o dever. Mas a reforma não lhe trouxe descanso — trouxe vazio. O relógio, que antes lhe organizava a vida, passou a marcar o tempo que ele não sabia como usar. As manhãs eram longas, os cafés pareciam iguais, e o silêncio da casa,...

Os Passos de Joaquim

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  "Os Passos de Joaquim" Joaquim Mendes tinha 77 anos e vivia na cidade costeira de Setúbal. Cabelo branco como as ondas da praia da Figueirinha, olhos vivos e mãos marcadas pelo tempo. Tinha sido sapateiro durante mais de cinco décadas, ofício que aprendeu com o tio quando ainda era um rapaz magro e curioso. A oficina, com cheiro a couro e cola, era quase uma extensão do seu corpo. Aos 70, decidiu reformar-se. Não por cansaço, mas porque os joelhos começaram a queixar-se e os clientes antigos, muitos já desaparecidos, tinham sido substituídos por sapatos descartáveis e centros comerciais. Fechou a oficina com dignidade, arrumou as ferramentas e voltou-se para o silêncio. Nos primeiros meses, sentiu-se livre. Caminhava todos os dias à beira-mar, jogava sueca no jardim, conversava com vizinhos. Mas, com o tempo, começou a sentir-se... invisível. Era como se o mundo tivesse passado por ele e não se tivesse dado conta de que ainda estava ali, inteiro, disposto. Certa tarde, enqu...